Alex Ferraz

Andrea Beltrão volta aos palcos com o aclamado espetáculo ‘Lady Tempestade’ 

Depois de uma temporada de sucesso no início de 2024, espetáculo volta ao Teatro Poeira, no dia 09/01, com três indicações ao Prêmio Shell: melhor atriz, direção e dramaturgia

“Lady Tempestade”, monólogo com Andrea Beltrão, que fez uma primeira temporada no Rio com ingressos esgotados desde a estreia e concorridas sessões extras, reestreia no Teatro Poeira, no dia 09 de janeiro de 2025. Uma nova oportunidade de assistir e rever este grande sucesso de público e crítica.

Passado, presente e futuro se embaralham em “Lady Tempestade”, espetáculo cuja dramaturgia parte dos diários da advogada pernambucana Mércia Albuquerque (1934-2003) para refletir sobre violências e injustiças no presente e no futuro, através dos relatos sobre sua atuação em defesa de centenas de presos/as políticos/as do Nordeste, principalmente entre 1973 e 74, um dos períodos mais pesados da ditadura brasileira.

Na trama escrita por Silvia Gomez e dirigida por Yara de Novaes, Andrea Beltrão interpreta A., mulher que recebe os diários de Mércia e fica impactada com o testemunho pela busca de justiça — ou, ao menos, o paradeiro de desaparecidos, a partir das súplicas de mães desesperadas — e com a narrativa repleta de violência e coragem.

Numa espécie de “diário dentro do diário”, A. encara o dilema de se envolver com aquela história, mas acaba mergulhando nela. Aos poucos, vai revelando uma personagem feminina importante, que começa a ser reconhecida a partir da publicação de suas memórias em livro, em 2023.

“Mércia dizia que era uma contadora de histórias de pessoas que reconstruíram a liberdade. Eu sou uma contadora de histórias. Eu acredito que contar histórias é uma maneira amorosa de pensarmos juntos no nosso passado, nosso presente e nosso futuro. Contar histórias amorosamente, para nunca esquecer. Para tentarmos responder às perguntas que nos fazemos aqui e agora”, explica Andrea.

A opção de levar essa história aos palcos veio, por coincidência, após seu monólogo “Antígona”, montagem sobre o clássico de Sófocles em que a protagonista enfrenta a ordem do rei Creonte para deixar seu irmão, que lutou na guerra, insepulto. Andrea levou o prêmio APCA de melhor atriz pela peça, que se desdobrou também em livro e no filme “Antígona 442 a.C”. Agora, retoma o tema da luta por justiça, e pelo sepultamento digno de entes queridos, em “Lady Tempestade”.

Ao fazer paralelos com o tempo presente — com direito a um desabafo verídico, em áudio, de uma mãe que teve o filho assassinado pela polícia em 2022 —, A. envolve a plateia numa questão angustiante, mas provocadora: se não dá para “desver”, o que podemos fazer com isso?

Com a dúvida se transformando em parte do enredo, foi natural para Silvia Gomez adotar uma ideia dada por Yara: narrar a história como se fosse o diário de A. lendo o diário de Mércia. “A personagem da Andrea diz: queria fingir que não tinha recebido aquilo, mas não era mais possível. Eram coisas semi-desaparecidas e não são mais. Então, para que futuro vamos após ouvir as palavras de Mércia?”, indaga a autora.

Não à toa, uma frase é repetida algumas vezes no texto, após a leitura de trechos dramáticos do diário de Mércia: “Essas coisas acontecem, aconteceram, acontecerão”. Silvia desenvolve: “Alguém do presente, como nós, recebe uma convocação do passado. De repente, na escrita, o tempo verbal tornou-se arisco: às vezes no passado, às vezes no presente, às vezes no futuro. Como se a forma pedida pela obra nos lembrasse que o Brasil é reincidente no esquecimento de sua história, tantas vezes parecida com uma cena em looping de terror”.

60 anos do golpe civil-militar

Yara e Andrea buscavam um texto para trabalharem juntas, sem tema pré-definido. A diretora de “Lady Tempestade” tinha participado como atriz, há pouco tempo, do elenco de “Zé”, filme de Rafael Conde sobre o militante mineiro José Carlos Novaes da Mata Machado, assassinado no DOI-CODI do Recife em 1973. Ali, soube da existência de Mércia, porque foi a advogada que conseguiu localizar o corpo da vítima, promover a exumação e a transferência para Belo Horizonte.

Ao pesquisar sobre a história de Mércia, Yara chegou a Roberto Monte, que dirige o Centro de Direitos Humanos e Memória Popular, no Rio Grande do Norte. Foi a ele que Octávio, marido da advogada, confiou os arquivos após a morte dela, em 2003. Além dos diários, há cartas e processos no acervo. Citado na peça como R., a pessoa que envia a encomenda para A., na vida real Monte de fato mandou os escritos da pernambucana para Yara e Andrea antes mesmo de publicá-los, em meados de 2023, no livro “Diários de Mércia Albuquerque: 1973-1974” (editora Potiguariana).

“Foi um susto”, conta Yara, ao lembrar da reação ao receber e ler o diário. Em seguida, elas tiveram acesso também a uma entrevista em áudio de Mércia para Samarone Lima, autor da reportagem biográfica “Zé: José Carlos Novaes da Mata Machado”, que inspirou o filme de Rafael Conde.

Diário e entrevista alimentam a narrativa que ganha o palco do Teatro Poeira no ano em que o golpe civil-militar completa seis décadas. Não faltam histórias impressionantes. Mércia foi presa 12 vezes — em uma delas, estava sozinha em casa com seu bebê, e mandou uma mensagem em uma garrafa, presa numa cordinha, para a vizinha de baixo, pedindo para ela cuidar da criança enquanto ela não fosse liberada pelos “gafanhotos” (uma das alcunhas que usava para chamar os militares).

A “virada da heroína” acontece, nas palavras de Silvia Gomez, quando Mércia vê o militante Gregório Bezerra ser torturado no meio da rua, em 1964. Recém-formada em Direito, ela chegou em casa e comunicou ao marido que iria defender aquele homem e quem mais precisasse.

Mesmo tendo defendido mais de 500 pessoas e ser considerada a maior advogada nordestina de presos políticos durante a ditadura militar, Mércia ainda é pouco lembrada. “Isso chama a atenção pois, de modo geral, tantos homens são reverenciados com nome e sobrenome por seus feitos heroicos”, observa Silvia. “O sistema trabalha muito bem para certos nomes serem apagados.”

A partir dessa ideia de uma atuação heroica, a seu modo, e de uma frase de Mércia em que ela se compara à mãe — “minha mãe é bonança, eu não, sou tempestade” —, surgiu o apelido que deu nome ao espetáculo. “As pessoas que entrevistamos disseram que ela tinha um olhar muito forte, olhar de relâmpago”, conta Silvia, que escreveu o texto também inspirada por conversas com mulheres como a jornalista e prima de Mércia, Eliane Aquino, a juíza Andrea Pachá e a escritora e ensaísta Helena Vieira e por canções de artistas como Ceumar, Linn da Quebrada, Beyoncé, Kae Tempest. “Usar o nome Lady Tempestade foi uma maneira de trazer Mércia para o presente pois é aqui que ela nos confronta com o futuro.”

Sair da versão mobile