
Parece até letra de samba-canção. Mas sabe-se lá o que aconteceu com a música brasileira alguns anos atrás que o que era um virou dois: a canção, também chamada por muitos de MPB, foi para um lado, o samba para o outro. Decerto, como rompimento de casal apaixonado, muita inveja e maledicência provocou a, até hoje, lamentada separação. Muito mais do que supostas incompatibilidades entre os dois.
Não é por acaso, portanto, que os primeiros versos do samba-canção que dá título a este novo trabalho da cantora Branka, “Trilha sonora”, refiram-se aos tempos felizes em que o samba e a MPB estavam tão juntos que pareciam – eram – uma coisa só: “Seu Pixinguinha ouvi/Assis Valente, Ary/Baden, Luiz Bonfá/Pelas manhãs de carnaval/Vi Elizeth enluarar…”.
Na verdade, mais do que promover a reconciliação, Branka trata a música brasileira como se não houvesse separação. E a prova disso está na própria essência do novo disco: a obra do compositor Sombrinha, sambista de sucesso, fundador do grupo Fundo de Quintal, parceiro-irmão de Arlindo Cruz, renovador do cavaquinho para o samba, autor de dezenas de sucessos populares nas vozes de Zeca Pagodinho, Beth Carvalho e de qualquer cantor de samba que se preze, coisas como “Só para contrariar”, “O show tem que continuar”, “Ainda é tempo de ser feliz”, “Malandro sou eu”, “Além da razão”, tantos que citar tão poucos é até indecoroso.
Mais, muito mais do que isso: “Trilha sonora” é um álbum originalíssimo e necessário ao jogar luz sobre a obra de Sombrinha da forma sofisticada como ela é e talvez nunca tenha sido abordada em seu conjunto.
Tudo começou quando, encantado por sua voz, Sombrinha presenteou Branka com oito de suas canções inéditas, feitas com diversos parceiros. A coleção de canções mostrou-se tão notável que, a partir delas, Branka teve a ideia ambiciosa de chamar três grandes pianistas brasileiros para escreverem os arranjos.
Assim, com produção de Carlinhos Sete Cordas, companheiro de vida de Branka e ele próprio um instrumentista virtuose nascido e criado no meio do samba, e arranjos de Fernando Merlino, Gilson Peranzzetta e Leandro Braga, nasceu “Trilha sonora”, disco que neste 2019 celebra, mais do que os 60 anos de Sombrinha, a sua excelência como compositor.
“Trilha sonora”, o samba-canção, elegante parceria com Paulo César Feital, já coloca a obra de Sombrinha e o disco na tradição da grande canção brasileira construída a partir de Pixinguinha por compositores que vão de Ary Barroso a João Bosco e Aldir Blanc, e modernizada nas vozes das cantoras citadas, Ângela Maria, Elizeth Cardoso, Elis Regina, a tal música brasileira em que samba e MPB eram indissociáveis, e que Branka busca seguir e renovar.
A partir daí cada canção é um espanto. “Bahia de Amado” é um samba-canção-exaltação sobre a Bahia, tema de tantos sambas, mas aqui tão original e inusitado que Gilson Peranzzetta fez por bem incluir um acordeom que dá toques franceses (a segunda pátria do Jorge Amado inspirador do samba) ao arranjo.“Pra sempre Mangueira” é outro desses casos, em princípio mais uma exaltação à Verde-e-Rosa (quase um gênero em si na música brasileira), mas que se faz original com melodia tão linda, tantas nuances harmônicas e principalmente a letra (do próprio Sombrinha) explorando as rimas com Mangueira, criando neologismos como o gerúndio “verderoseando” e o totalizante achado final: “É a Mangueira de ontem, a Mangueira de hoje, ela é do amanhã”.
Na mesma clave da originalidade, a parceria de Sombrinha e Arlindo Cruz “Desamor” chega a flertar com a bossa nova, no violão de Claudio Jorge e no piano e arranjo sofisticadíssimos de Leandro Braga. Mas assim como renova antigas parcerias, Sombrinha inaugura outras nesta nova leva de canções. Com Moacyr Luz, por exemplo, apresenta o delicioso e feliz samba clássico “Lua de Paris”. E com Zélia Duncan em “Sorriso na Avenida”, as metáforas do samba e da ilusão do carnaval servem para, bem na tradição, exaltar o amor.
A variedade do repertório vai de um samba tradicional como “Meus erros”, parceria inédita com Neoci dos tempos em que Sombrinha era um dos bambas do pagode do Cacique de Ramos, a uma valsa sofisticada como “Infinito e o tempo” que qualquer grande compositor do mundo assinaria e evidencia ainda mais a ampla musicalidade do compositor.
Na melhor tradição das grandes cantoras brasileiras, Branka empresta a naturalidade, o balanço e a força de sua voz para lançar repertório inédito tão especial. Cantora e também compositora de Curitiba, onde começou sua carreira com acento pop e sofisticado, e sob seu nome de batismo, KarymeHass, Branka foi se aproximando cada vez mais do samba, na medida em que se mudava e se apaixonava pelo Rio de Janeiro e sua música. Lançado no ano passado, o CD “Trilogia flores douradas – A flor” marcou definitivamente a entrada de Branka no universo do samba pela porta da frente, avalizada por elogios e canções inéditas de gente como Moacyr Luz, Nei Lopes e Arlindo Cruz.
Este “Trilha sonora” é uma síntese de sua trajetória, que mistura o samba mais essencial, que abraçou e a fez se tornar conhecida nas mais exclusivas rodas de samba da cidade, com a tradição mais sofisticada da música brasileira. Trabalho típico de uma intérprete de samba e de MPB, como se tal separação nunca tivesse acontecido, como se configura o futuro da melhor música popular brasileira.